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sábado, 7 de maio de 2011

FELICIDADE CLANDESTINA

                                                      
                                                              Clarice Lispector
                                      In Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto  enorme,  enquanto  nós todas  ainda  éramos  achatadas.  Como  se  não  bastasse,  enchia  os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco  aproveitava.  E  nós  menos  ainda:  até  para  aniversário,  em  vez  de  pelo  menos  um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas  que  talento  tinha  para  a  crueldade.  Ela  toda  era  pura  vingança,  chupando  balas  com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma  ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de   ler,   eu  nem  notava   as   humilhações   a   que   ela   me   submetia:   continuava   a   implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até  que  veio  para  ela  o  magno  dia  de  começar  a  exercer  sobre  mim  uma  tortura  chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era  um  livro  grosso,  meu  Deus,  era  um  livro  para  se  ficar  vivendo  com ele,  comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e  sim  numa  casa.  Não  me  mandou  entrar.  Olhando  bem  para  meus  olhos,  disse-me  que  havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar,  mas  em  breve  a  esperança  de  novo  me  tomava  toda  e  eu  recomeçava  na  rua  a  andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo.
Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu  sofrer,  às  vezes  adivinho.  Mas,  adivinhando  mesmo,  às  vezes  aceito:  como  se quem quer  me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não  era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando  sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo  humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição  muda e diária daquela  menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão  silenciosa, entrecortada de palavras  pouco  elucidativas.  A  senhora  achava  cada  vez  mais  estranho  o  fato  de  não  estar entendendo.  Até  que  essa  mãe  boa  entendeu.  Voltou-se  para  a  filha  e  com  enorme  surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

Postagem: Silvia de Deus

Dica: Ao clicar no link http://www.4shared.com/get/9i7R-G6h/Monteiro_Lobato_-_Stio_do_Pica.html
você poderá baixar, gratuitamente, o livro As Reinações de Narizinho, no formato doc, 2,304 Kb. É um livro imperdível, receheado de aventuras e ilustrações, em belas histórias contadas por  um de nossos melhores escritores: Monteiro Lobato. Em breve deixarei aqui algumas trechos desta obra. Boa leitura!

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